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Artigos A Constituição Federal dirigindo o Brasil há 30 anos

A Constituição Federal dirigindo o Brasil há 30 anos

Gosto muito do disco Riding with the King, de Eric Clapton e B. B. King. Dois artistas consagradíssimos, com origens diferentes, nacionalidades distintas, etnias diversas, estilos ecléticos, unidos pelo blues, aparecem sorridentes e alegres, com suas guitarras à mostra, na foto da capa do disco em que Clapton serve de motorista à King, em um belo carro antigo, conversível, preto com estofado branco.

Lembro-me dessa imagem quando penso nos 30 anos de nossa Constituição. É preciso que os mais novos vejam como era antes para que se deem conta de como avançamos até chegar aqui. Fosse a Constituição um automóvel, e olhássemos o passado pelo retrovisor, constataríamos que os 30 anos da Constituição de 1988 revelam muito mais êxitos do que fracassos.

Antes de 1988 não existiam liberdades públicas. Eram fortemente tutelados os direitos fundamentais de liberdade de expressão, de imprensa, de ir e vir, de reunião, dentre vários outros. Não era possível xingar o governo nem havia eleições livres. Marcha das mulheres contra ou a favor de quem fosse não poderia ocorrer. A propaganda eleitoral era feita apenas com a imagem do candidato e seu número, sem que ele pudesse sequer dizer uma única palavra. Os jornais tinham que tentar burlar a censura publicando mensagens cifradas em obituários, ou nas colunas sobre a previsão do tempo — às vésperas do AI-5, que completa 50 anos, um jornal publicou que o céu apresentaria chuvas intensas e trovoadas, a despeito do verão então vigente. Era a maneira de informar à população das cassações de liberdades e do endurecimento do regime que estava sendo gestado. Jornais eram censurados, e existia um regime de opressão nas ruas.

Havia corrupção, como se pode constatar nas denúncias efetuadas nos livros de José Carlos de Assis[1], que só puderam circular no ocaso do regime militar, em razão da censura. Logo, a ideia de que os tempos passados eram mais limpos não é real. Como escreveu Manoel Gonçalves Ferreira Filho[2], a corrupção é um fenômeno humano, identificado desde o passado mais remoto. Hoje é possível denunciar qualquer irregularidade sem medo. É bem verdade que isso ocorre muitas vezes sem responsabilidade, quase que em um clima carnavalesco, como uma folia, pois, não comprovada a denúncia, o denunciante não sofre nenhuma sanção — há um déficit de republicanismo em nosso país, que se traduz na irresponsabilidade desses atos. Destroem-se reputações sem comprovação, e fica tudo por isso mesmo.

Recuperamos a liberdade em 1988, porém ainda estamos patinando em termos de isonomia, o maior desafio nestes 30 anos.

Foi incrementado o uso da receita pública para concretizar diversos direitos sociais. Antes, no âmbito da saúde pública, o atendimento médico era apenas para quem fosse segurado da previdência, o que deixava grande parte da população à míngua de tratamento, ficando ao sabor das eventuais cortesias do sistema de saúde. Hoje, qualquer pessoa tem acesso ao atendimento gratuito pelo SUS. Foi ampliado o acesso à educação, com diversos incentivos financeiros, alguns através do Fundeb, para estados e municípios, outros através do Fies, para o setor privado. Aumentou a malha sanitária no país. Foi ampliado o número de creches e áreas de lazer e espaços de cultura. Foram criados fortes incentivos à aquisição de casa própria pela população de baixa renda. A população passou a ter mais acesso à energia elétrica, ao sistema de telefonia e, consequentemente, à internet. Políticas inclusivas foram implementadas, embora ainda seja difícil imaginar uma situação étnica como a da foto em que Clapton, branco, serve de motorista a King, negro. Muito mais poderia ser dito, mas o espaço é curto.

O fato é que através da universalização dos serviços públicos avançamos na isonomia, deixando menos desigual a liberdade. Não basta que todos tenham liberdade se ela não pode ser concretizada, por falta de bens e serviços públicos ou do acesso a eles. Pode-se afirmar em concreto a liberdade de trabalho das mães se as creches estiverem distante do local de emprego ou de moradia? É sobre isso que escrevi em meu livro mais recente, Orçamento Republicano e Liberdade Igual, já disponível[3].

Temos avançado no âmbito da isonomia, porém de forma lenta, muito lenta. Gerações vão se perdendo pelo caminho, e “gente é pra brilhar, e não pra morrer de fome”, como disse o poeta[4]. Ainda há muito a ser feito, seja na universalização, seja na qualidade dos serviços públicos, que ainda deixam muito a desejar. A despeito de termos avançado, o fizemos de forma lentíssima, pois outros países que estavam em estágio de desenvolvimento muito mais atrasado do que o nosso 30 anos atrás nos ultrapassaram vastamente, como os do sudeste asiático e alguns países do leste europeu. Temos gasto muito, e mal. Assim, não há sociedade que se sustente.

Porque isso ocorre? Esse é outro ponto a ser analisado. Concordo com Bercovici e Massonetto[5] quando escrevem que os direitos sociais foram garroteados pela rigidez financeira implantada no Brasil, em especial após a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Heleno Torres também denuncia isso em seu livro Constituição Financeira, leitura imprescindível sobre o tema[6].

Ninguém é a favor de irresponsabilidade fiscal, por óbvio. Porém, ficamos reféns das metas de superávit primário, que servem como garantia dos credores de nossa dívida, deixando de dar prioridade às metas sociais, várias delas inscritas em nossa Constituição. Basta ler o artigo 9º, da LRF para ver como acontece o privilegiamento do financeiro sobre o social, do interesse dos credores sobre a busca da isonomia. É simples entender. Primeiro, determina-se como meta o valor do superávit primário, e tudo que for receita ou despesa deve se adequar à obtenção de tal resultado. Se for estabelecido que a meta de superávit primário deva ser de 3,8% (altíssima, como no governo Lula), ou se arrecada mais, ou se gasta menos, porém tal meta deve ser cumprida a qualquer custo, no interesse dos credores. E a Constituição, que prevê a redução das desigualdades sociais e regionais? Fica em segundo plano? Temos que estabelecer metas sociais, e não de superávit primário, e adequar o saldo para pagar os credores — que devem ser pagos, claro. O privilegiamento deve ser invertido, em prol da maioria de nossa população.

Penso que o problema está no sistema político, que não tem permitido o devido arejamento de ideias e renovação de propostas. Constata-se que existem clãs que há décadas dominam os parlamentos (federal, estaduais e municipais), muito antes da Constituição de 1988. Olhe ao seu redor e constate os nomes. Ouvi dizer que em Minas Gerais existe uma família que se orgulha de ter membros eleitos para o Legislativo desde a proclamação da república — já se vão cerca de 130 anos... É verdade que são eleitos, mas como e por que isso ocorre? Será que isso advém da qualidade de suas propostas ou em razão de votos de cabresto, cooptados pelos métodos descritos por Vitor Nunes Leal há quase 80 anos, em seu livro Coronelismo, Enxada e Voto[7], ou em razão de uma sistemática mais sutil e contemporânea, como descreve Sérgio Lazzarini em seu Capitalismo de Laços[8]? Um dos aspectos mais importantes está no desenho de nosso sistema de Direito Financeiro Eleitoral, bastante falho, que acarretará a menor renovação legislativa em décadas nas eleições da próxima semana. É horrível ter que escrever “eu avisei”, mas ocorre que venho escrevendo sobre isso há tempos[9].

Deixando o retrovisor de lado e olhando pelo para-brisa do automóvel, verifica-se que, na semana em que a Constituição faz 30 anos, geram debate no meio acadêmico os livros Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e Por que as Nações Fracassam, de Daron Acemoglu e James Robinson. Ao mesmo tempo, despontam nas pesquisas para presidente dois candidatos que, aparentemente, apresentam opções opostas de mundo, Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, o que reforça a necessidade de tentar compreender o futuro de nosso país.

Quem quer que vença a disputa — esses dois ou terceiros — terá um país financeiramente destroçado para governar. A arrecadação é fortemente centrada nos tributos sobre a circulação e produção, o que viola a capacidade contributiva, fazendo com que ricos e pobres paguem o mesmo tributo pelo feijão de todo dia. A renúncia fiscal não tem controle, sendo mais fácil identificar o que sai dos cofres públicos do que apurar o que nele deixa de entrar. O gasto público é fortemente centrado no pagamento de servidores públicos e previdência, deixando apenas um tiquinho de grana para gastos sociais e investimentos em infraestrutura. Gasto mal realizado acarreta dívida, o que piora a situação, pois todos pagam tais empréstimos, mas só uns poucos dele usufruem, seja emprestando dinheiro ao governo sob juros generosos, seja haurindo os gastos públicos — que muitas vezes são realizados sem nenhum controle, como se vê em estados e municípios, não alcançados pela EC 95.

É imprescindível desarmar essa bomba-relógio pública e deixar mais recursos disponíveis para ampliar os direitos sociais, através dos quais as pessoas poderão se tornar mais iguais e ter real liberdade para desenvolver seus projetos pessoais e econômicos. Os gastos públicos devem ser norteados pela capacidade receptiva, conceito cunhado por Regis de Oliveira[10], que representa a necessidade das pessoas em receber as prestações civilizatórias do poder público. Assim a economia vai fluir e voltar a crescer. O Brasil está financeiramente engessado, e a culpa não é do gasto com direitos sociais, como já escrevi à farta[11].

Se conselho fosse bom, não seria dado, mas vendido. Porém, às vésperas das eleições e contrariando meu lado libanês, dou de graça um conselho aos chefes dos Executivos e membros dos Legislativos que forem eleitos: deixem as propostas de uma nova Constituição de lado e obedeçam mais à atual Constituição, que é boa e merece a chance de continuar a vigorar. Voltem a obedecê-la, o que não tem acontecido nos tempos atuais nem mesmo pelo Judiciário, como Lenio Streck denuncia amiúde nesta ConJur.

Existem carros que funcionam bem, mesmo tendo 30 anos. Vê-se na foto do álbum que Clapton e King estão felizes no velho conversível. Tal como os carros, as Constituições podem necessitar aqui e ali de uma reforma, mas não se deve bulir com o que está funcionando. O motor pode estar lento, sendo necessário um reparo para que desenvolva mais rápido; mas não é necessário trocar de carro. O risco é piorar, ou travar de vez o sistema, e não se ter mais direção. É preciso ter cautela.



Autor: Fernando Facury Scaff

Fonte: Consultor Jurídico

Matéria Original: https://www.conjur.com.br/2018-out-02/contas-vista-constituicao-federal-dirigindo-brasil-30-anos

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